segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Conversas Cartomânticas: O INFERNO chega ao Conversas Cartomânticas... Leonardo Chioda e o Diabo.


Olá pessoal. Chegamos agora ao mais controverso e magnético arcano do Tarot. Se Arcano, enquanto Mistério, é atraente por natureza, esse mistério é atraente por reverter polaridades - aquilo que se detesta, se deseja, e vice-versa. 
Interessante pensarmos que, a despeito de ser o temor escatológico de diversas religiões, perde, DE LONGE, em termos de negatividade para a carta que o sucede. Conhecer Tarot é reconhecer que padrões mudam e paradigmas caem por terra, às vezes literal e iconograficamente.
E, para dissecar esse Arcano de forma visceral - e poética, não nos esqueçamos da poesia - temos cá Leonardo Chioda. 
Leonardo Chioda é tarólogo, escritor e artista gráfico. Desde cedo engajado na vivência plena da espiritualidade, já fez parte de entidades filantrópicas, realizou trabalhos artísticos e socioambientais. Estudante de Letras pela UNESP, já leciona língua e literatura italiana e tem se dedicado às pesquisas históricas sobre os arcanos e à prática da leitura de imagens para ampliar seus domínios criativos. Vem utilizando o tarô como um sistema de linguagem visual interdisciplinar ao aproximá-lo das artes plásticas, da literatura e do cinema. Considerado o mais jovem profissional em destaque na mídia, tem traduzido textos de autores consagrados sobre o assunto e colaborado com artigos e matérias para diversos sites, além de participar de eventos sobre tarô e simbologia pelo Brasil afora.
Confiram seu trabalho no famigerado Café Tarot.
Nem tenho o que dizer. O Diabo cá apresentado magnetiza, corrompe e seduz em mesma medida, tornando qualquer palavra minha pouco para apresentá-lo; deleitem-se, crianças... e torçam para dormir à noite.

DO DEMÔNIO: 
A Imagética do Perverso nos Espelhos


O Diabo é uma das figuras mais interessantes de todo baralho de tarô. Uma genial criação católica e mesmo um sucesso de vendas, de público, de culpas. Celebridade tão bem consolidada que se mantém prostrada sobre um pedestal ornamentado com crânios, sangue, fogo e perfume. Ostentação. Raízes na terra dos homens, essa coisa que não é homem e nem mulher, mas é mulher e homem. Detalhes, importantes detalhes.
Os arcanos, enquanto números de um festival folclórico absolutamente vivo no âmago da humanidade, servem aos mais atentos leitores de mundo. Esse que agora desfila é um dos pilares do imaginário: vem pomposo, todo trabalhado num mosaico de animais peçonhentos, fogos e venenos. A carta XV é um exercício de monstruosidade. É ela o portal para os pais que assassinam os filhos, os filhos que destroem os pais e os bichos de estimação, os espectros que não descansarão antes de corroer a família dos vivos e também aqueles profanam a própria carne de modo bruto e consciente. Tortura é elogio.Freak show ininterrupto.

O demônio de Jacques Vieville, de 1650, desfilando seus maus modos e perversidades.
Le Diable, de Etteilla, cuja concepção encabeça Baphomet no centro dos destinos.


Só se engana pelo Diabo quem quer. Ou quem o nega. O próprio medo é como uma corrente que une a ele, perfurando a carne e a alma. Presenças estranhas na calada da noite não são gratuitas. Frente a tantas teorias sobre o seu papel, ele ri. Louca e estranhamente. De si e dos homens que um dia invejou. Mas agora é um dos soberanos entre eles.
Na terra e no mar dos pesadelos, sua santidade faz miséria.  Terrores noturnos. O tarólogo que se prostra diante de sua imagem o trata como um arcano a mais, mesmo sabendo que ali é a fossa dos complexos, dos arrependimentos, das ganâncias e do melhor que existe no pior de cada um. Arcano que confunde. O pai do bizarro. A mão que chacoalha o berço dos pecados todos é negra, com unhas pontudas.
Detalhe de The Devil, doSwiss IJJ Tarot.


A blasfêmia é uma especialidade. Os detalhes lhe servem sempre. Segue no céu o ritual do nojo, porque voa. Asas e tocha. Seria mesmo uma tocha o que carrega na mão esquerda? O fogo que pode incendiar a Terra. Ou ainda, por ser o pai da mentira, nos faz ver que esse o tal objeto é a lâmina de uma espada, manuseada sem nenhum cuidado. Cócegas na carne demoníaca. 
Voltemos os olhos, com cuidado, aos registros visuais históricos. São inúmeras as diferentes manifestações do mal. Gastrocéfalo, na maioria delas. Um rosto no abdome indica o deslocamento da sede intelectual (cabeça), agora posta ao serviço dos apetites mais baixos. Uma homenagem à Gula, uma de suas virtudes capitais favoritas.

O gastrocéfalo na antiguidade do tarô e na recriação de Camoin e Jodorowsky.

Também se vê que ele vê. Demais, por ser o mercador do excesso. Olhos nos joelhos para enxergar em todos os níveis da existência. A língua exposta é a reação rebelde às boas normas. Blá, blá, blá. Dane-se. Diálogos possíveis e recheados de palavrões com as pranchas de Mitelli. As orgias simbólicas é que trazem sentido ao Tarô.


Le Diable de Jean Dodal entre CVRIOSITA e ARPIA de Giuseppe Maria Mitelli.

A curiosidade é um mal porque faz procriar a fofoca, a inveja, a pichação da tela harmônica que mantém as melhores famílias, as boas relações e os produtivos negócios. Deturpa tudo, não deixa nada como antes. As alegorias do grande bolonhês, acima, falam por si. Convergências tão altas que fazem doer os olhos. E os ouvidos, percebe?
La serpente magique de Etteilla lembra que é importante escolher bem para escolher sempre. Ele é o desdobramento do sexto arcano, Os Amantes. Depois do “sim”, a prisão pode ser pra sempre. A estrutura é triangular. E o que os olhos veem o coração pode sentir, de algum modo. Curioso é que ele pode mesmo assumir o papel do Anjo do Amor. Quando laços afetivossão regados com ciúmes, cobranças e carências exacerbadas, o fim é iminente.O ódio tomar lugar no culto.
Ou não. Quando pensa na loucura, filha predileta às normalidades do Anjo de Trevas, percebe-se tardiamente que o caos reina. Exemplo já clássico das artimanhas desse evento divino é ANTICRISTO, do perturbado Lars Von Trier. Lição demoníaca obrigatória.

O aprisionamento afetivo iminente na lamina The Lovers, de Pamela Colman Smith. Cartaz de ANTICRISTO, de Lars Von Trier, 2010.

Maldito és entre nós, profanador de almas. Perditorvn Raptor. Os altos e baixos apetites não poupam ninguém. Posterior ao sabbat é o ato de devorar. Agente mágico empregado para o mal por uma vontade perversa, segundo os passos de Eliphas Levi. Feitos os pedidos, paga-se o que deve. Caso contrário, o Contrário o caça. Encarna o sequestrador das almas perdidas.  Provavelmente Plutão, deus do submundo, vindo sobre uma carruagem em chamas após ter sequestrado uma jovem nua. Cena aterradora bem propícia a terrores noturnos.

14, Perditorvn Raptor – Rouen Tarot, século XVI.

Falando na estrutura do ambiente, tem-se o submundo, a masmorra inacessível que Pamela Smith pintou bem abaixo dos lençóis freáticos d’A Temperança. Na verdade – se é que há alguma aqui – a fotografia primordial do arcano enquadra o próprio ritual em homenagem à abominável criatura. Ali é hotpoint dos pecadores e desesperados. A sombra fala através do espelho e o cenário é digno de Gustave Doré ao imaginar a obra prima de Dante Alighieri.

New Vision Tarot - LoScarabeo


Tão confundido, tão mal dignificado, tão desprezado. Mestre dos disfarces, o Diabo acaba sujando o nome dos deuses que lhe deram os protótipos de imagem e conceito.  Pobre Pã. Pobres faunos. Mas eles servem, ricos, às aproximações simbólicas tão caras à diversidade de temas e tarôs espalhados por aí. As palavras-chaves são quase sempre as mesmas: obstáculos, condicionamentos, perda da liberdade, obsessão, materialismo. E também, graças a Deus(?), potencial criativo, humor. Muito humor, negro ou não. Sedução não falta na passagem da literatura pagã ao inferno dos clássicos depois de Cristo.

Famiglia di satiri che compie un sacrificio a Pan, de Bernardo Luini. Pinacoteca diBrera, Milão.

Pã é um dos favoritos. Nessa pintura de Barnardino Luini se vê a mais que nítida associação dos escravos acorrentados com os sátiros. Essas aproximações arcanas só são produtivas quando se entende a natureza do trunfo, que é vária. Disforme. Polissêmica. Sempre nos chamando e pressupondo amor e dedicação. Exatamente como os seus outros 77 membros, tão queridos. Tão subjetivos. 

Baphomet, sua mais popular faceta, embebida em ocultismos e desinformações, se alimenta de cultura pop. 

Sexo, drogas e cartomancia. O underground é válido. E é válido falar da voz da Cabra Mística e de suas poses sombrias, do medo que só ele causa e só ele cura, da obsessão e da competitividade e também da criatividade que tonifica os perversos. A fonte de sangue e vísceras da qual bebe o Diabo é inesgotável, como as suas formas ao longo da escrita e da imagem, sobre ele e suas danças. A leitura do tarô informa e recruta os sentidos. E no caso dessa lâmina, tão afiada, a transformação pode ser inimaginável. É a possessão possível. E o inferno é tão simbólico e animador que continuamos dançando à luz dessas imagens e desses detalhes. Nós, os seus feiticeiros – todos acorrentados à poesia escarrada no corpo.

O inferno somos nós,

Leo

Um comentário:

  1. Hoje li novamente. Entre encantada e aterrorizada me pergunto: será que durmo?
    Nesta semana mandei um tarô para os filhos de minha afilhada na Bahia. Tirei algumas cartas, mas deixei o diabo, pois certamente, mesmo crianças, elas já o conhecem.

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Quando um monólogo se torna diálogo...